O Verdadeiro Vintage

A decoradora havia chegado para a reunião com o casal de noivos. Eles se encontravam no apartamento da moça. Mal havia chegado, o local já lhe despertava curiosidade. Logo perguntou à noiva:
“- Você mora com os seus pais?”
“- Não, moro sozinha”, ela respondeu.
“- É que o lugar tem uma vibe vintage. Você tem muito bom gosto!”, disse a decoradora.
A noiva achou o comentário engraçado. A decoradora não podia imaginar que o estilo do apartamento não era resultado do gosto particular da atual moradora, mas sim se tratava do acúmulo de memórias materiais (e imateriais) dos antigos moradores – gerações da mesma família que ali passaram anos, meses ou semanas tentando começar a vida ou iniciando os estudos na cidade grande.
As camadas deixadas pelo tempo estavam nos quadros trazidos pelos avós; nos utensílios de cozinha, na geladeira e no fogão dos pais; no sofá e nas camas de ferro do tempo da tia; no vazamento do vaso sanitário, manchas do chão e adesivos de bandas de rock na parede, todos acréscimos da época da irmã; no piano surrado, elemento que a atual moradora foi responsável por acrescentar no cenário.
Em Em Busca do Tempo Perdido, Proust já falava do poder dos objetos acumulados ao longo do tempo, quando sentiu remorso ao vender os móveis de sua finada tia para um bordel. O autor conta que os objetos pareciam vivos, guardando almas aprisionadas e suplicando por liberdade. Eram móveis portadores de segredos, que acompanharam o cotidiano extraordinário de uma mulher ao longo dos anos.
O quanto se deixa de vida, angústia e sonho em um objeto?
Ao olhar rapidamente o apartamento, a decoradora confundiu o acúmulo de camadas de tempo e memória com o desejo nostálgico de recriar o passado. O consumo possibilita a oportunidade de obter (ou pelo menos tentar) um pouco dos momentos e sensações que já passaram, de recuperar lampejos de outras épocas e do “eu passado”.
Mas se a decoradora observasse com cuidado os móveis e objetos que contribuíam para o estilo vintage do apartamento, ela notaria as manchas no chão. As asas de cupim no piano surrado. As manchas de sol no tecido desbotado do sofá. As louças de porcelana, que pareciam da época dos avós porque de fato pertenceram a eles. As ranhuras dos armários embutidos, móveis com a mesma idade do próprio apartamento.
De fato Proust estava certo. Os objetos revelam detalhes e segredos de almas aprisionadas. Só precisamos prestar atenção.

The Real Vintage

The decorator had come to the meeting with the bride and groom.. They were in the girl’s apartment. The moment she had arrived, the place was already curious. Then she asked the bride:

“- Do you live with your parents?”

“- No, I live alone”, she replied.

“- The place has a vintage vibe. You have a great taste!”, said the decorator.

The bride found the comment funny. The decorator could not have imagined that the style of the apartment was not a result of the particular taste of the present owner, but rather it was the accumulation of material (and immaterial) memories of the old residents – generations of the same family who spent years, months or weeks trying to start life or studying in the big city.

The layers left by time were in the paintings brought by the grandparents; in kitchen utensils, the refrigerator and the stove of the parents; on the sofa and iron beds of  an aunt’s time; In a leak of the toilet, floor stains and stickers of rock bands on the wall, all extras of the the sister’s time; in the shabby piano, an element that the current resident was responsible for adding to the scene.

In In Search of Lost Time, Proust was already talking about the power of objects accumulated over time, when he felt remorse when selling the furniture of his late aunt to a brothel. The author says that the objects seemed alive, guarding trapped souls and pleading for freedom. They were furniture that held secrets about an extraordinary daily life of a woman over the years.

How much life, anguish and dream are left in an object?

As she glanced quickly at the apartment, the decorator confused the accumulation of layers of time and memory with the nostalgic desire to recreate the past. Consumption allows the opportunity to obtain (or at least try) a little of the moments and sensations that have passed, to recover glimpses of other times and the “past self.”

But if the decorator had looked carefully at the furniture and objects that contributed to the vintage style of the apartment, she would notice the stains on the floor. The termite wings on the shabby piano. Sunspots on the faded fabric of the sofa. The porcelain dishes, which looked like grandparents’ time because they really belonged to them. The grooves of the built-in cabinets, furniture with the same age of the apartment itself.

In fact, Proust was right. The objects reveal details and secrets of imprisoned souls. We just need to pay attention.

Giovana Montes Celinski
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Written by Gigi Eco
Gigi Eco ama aprender e faz muitas coisas ao mesmo tempo - é jornalista, fotógrafa, professora, rata de biblioteca e musicista por acidente. Ama viajar e é viciada em chás. É a escritora oficial dos cartões de Natal da família. É Doutora em Comunicação e Linguagens pela Universidade Tuiuti do Paraná (UTP) e atualmente trabalha no seu primeiro livro de poesias.