A sereia de Varsóvia

Desde que ouvi pela primeira vez sobre a reconstrução de Varsóvia, numa aula sobre as teorias de restauro, fiquei fascinada pelo amor de seus habitantes para reconstruí-la das cinzas. Naquela época nunca imaginei que a minha história acabaria por se ligar a essa cidade de tantas formas, mas lembro de ter imaginado como seria incrível conhecer Varsóvia reconstruída.

Agora, que vivo aqui já por algum tempo, posso confirmar que é realmente extraordinário. É avassalador pensar em tudo que aconteceu nesse território. A vida durante a guerra no gueto judeu, as perseguições e assassinatos, a vida nos esconderijos e, enfim, a destruição total. No entanto, a vida segue em frente, e assim como a vegetação vai tomando conta de um edifício abandonado, assim a vida urbana foi retomando as suas atividades e ocupando os edifícios dessa cidade reconstruída.

Mas uma história tão longa deixa marcas. Às vezes essas marcas são mais evidentes, como monumentos em amplos espaços públicos. Às vezes é preciso ter um olhar mais atento para enxergá-las. E embora Varsóvia seja repleta de cicatrizes do tempo da guerra, quero hoje contar um pouco sobre as lendas mais antigas do surgimento da cidade e de um de seus símbolos mais conhecidos: a sereia.

A história na verdade começa no fundo do oceano Atlântico, onde existiu por muitos séculos um reino submarino muito rico, conhecido por alguns como Atlântida. Nesse reino viviam duas irmãs sereias extremamente curiosas para conhecer outros reinos marinhos e terrestres a respeito dos quais ouviram muitas histórias. Um dia não puderam mais esperar e decidiram seguir o chamado para a aventura e iniciar uma longa viagem. Passaram por muitos mares, seguiram junto com algumas correntes marítimas, cruzaram a linha do Equador, chegaram às águas geladas do mar do Norte e acabaram por fim no mar Báltico. Ali pareceu a elas especialmente encantador. Brincavam entre os fiordes, observavam as ondas quebrando e cantavam de forma tão linda, que até os pássaros silenciavam para ouvi-las.

Uma das irmãs gostava muito da proximidade das ilhas e decidiu que não abandonaria Copenhague. A outra quis ir além. Seguiu até Gdańsk e a partir de lá subiu o rio Vístula em direção ao sul, passando por cidades e vilarejos, até que encontrou um lugar que lhe pareceu próximo ao seu coração. Com alegria decidiu cantar ali, perto dos bosques e pradarias.

Certa noite, como de costume, a sereia nadou até a margem do rio e sob a luz da lua começou a cantar. Criada no fundo do oceano, ela não imaginava que a paisagem sobre a terra pudesse ser tão linda. Talvez por estar tão encantada com as árvores, não notou que estava sendo observada.

Há várias noites os pescadores Mateus e Simão a observavam e tramavam um plano para capturá-la. Haviam ido até o eremita local, o Pai Barnabé, para pedir conselhos. O Pai Barnabé decidiu também participar da emboscada e decidiram executar o seu plano numa noite de lua cheia, pois assim teriam melhor visibilidade. Eles se esconderiam entre o capim alto e quando a sereia se aproximasse para cantar na margem o rio, iriam capturá-la em uma gaiola feita de galhos de salgueiro.

Monumento da sereia na praça da cidade velha.

E assim aconteceu. Quando a sereia começou a cantar, o trio rapidamente lançou uma rede sobre ela para prendê-la. Eles estavam preparados para não serem vítimas de seus encantos, usando cera no ouvido para não se deixarem enfeitiçar pelo canto da sereia. Queriam levá-la ao príncipe, para que cantando para ele, ela melhorasse o seu humor. Certamente receberiam uma generosa recompensa em barras de ouro.

Logo após a captura, decidiram deixá-la durante a noite presa em uma choupana. De manhã cedo voltariam para pegá-la. A sereia, assustada por estar em um lugar desconhecido e com medo de seus raptores, começou a cantar um lamento, mas tão profundo, que acordou os moradores do vilarejo próximo. Eles conheciam a lenda sobre uma criatura encantada, metade peixe, metade mulher, embora não a tivessem visto antes. O canto era tão triste que decidiram tomar coragem e ir em busca daquela voz que chegava até os seus corações.

Quando chegaram até a choupana, libertaram a sereia e a ajudaram a voltar para a água. Dizem que isso aconteceu nas proximidades da rua Bugaj. Imensamente grata pela ajuda, a sereia lhes prometeu que iria para sempre proteger a sua aldeia e disse também que todas as gerações que se lembrassem dela, nunca esqueceriam o que é o bem e a liberdade.

Esse pequeno vilarejo cresceu, se tornou uma grande cidade, mas não esqueceu da pequena sereia. Ela é hoje o brasão da cidade. Podemos vê-la, com a espada e o escudo, às margens do Vístula nas proximidades do Centro de Ciências Nicolau Copérnico. Ela também está presente na praça do mercado, no centro da cidade velha.

No final, é preciso fazer uma ressalva. Como em toda lenda, existem inúmeras variações e imprecisões. Em algumas, a sereia aparece como um ser terrível, não só metade peixe, metade mulher, mas também com cauda de leão e asas de águia. Essa sereia pode ser vista nas portas da catedral de São João.

Sereia nas portas da catedral de Varsóvia.

Outra lenda fala que um jovem pescador chamado Wars se apaixonou pela sereia chamada Sawa. A sereia, enxergando o seu bom coração, renunciou a vida na água para que pudessem viver juntos na terra. Sawa deu a ele a espada e o escudo, para que Wars protegesse o rio e a aldeia. Wars e Sawa se casaram e viveram felizes, cercados de amor e alegria. Ao redor da sua cabana surgiu uma grande aldeia de pescadores, que em homenagem a eles decidiram chamar de Warszawa (Varsóvia em polonês).

Wars e Sawa podem ser vistos na rua Brzozowa observando o rio Vístula.
Fonte: https://opowiemcilegende.blogspot.com/2016/05/wars-i-sawa-wedug-wandy-chotomskiej.html

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Written by Ca Amatti
Ca Amatti é arquiteta restauradora, apaixonada pelos edifícios antigos, por viagens e artes gráficas. Tem saudades do futuro, mas ama os vestígios do tempo no mundo. Atualmente reside em Varsóvia, protegendo velhos palácios e monumentos dos efeitos devastadores do tempo e do esquecimento.