Desde aquele momento, passei a procurar esse tal guardião que espreita os lugares cotidianos e distantes pelos quais transito. É uma busca que nem sempre é fácil. Muitas vezes o genius loci pode estar bastante visível em cidades antigas e ruínas, em outras pode estar escondido nas sutilezas de um caótico cotidiano das grandes cidades.
Il Gran Caffè: o espírito italiano na bebida de um café local * Il Gran Caffè: the Italian spirit in the drink of a local café
Quando estamos em viagem por terras desconhecidas, talvez seja mais fácil sentir a presença do espírito que guarda uma localidade, mesmo que a gente não domine o idioma ou conheça em profundidade informações sobre a região. Nesse momento de aventura, não estamos mais no “modo automático” da rotina e todos os nossos sentidos estão aguçados. Nós saímos de nossa zona de conforto e abraçamos o novo. Sentimos como o genius loci se adapta a todas as transformações ao longo do tempo.
Lembro em especial da reflexão da personagem Liz Gilbert em Comer, Rezar, Amar sobre uma ruína da cidade de Roma:
“[…] outro dia, ouvi uma história incrível, chama-se: o Augusteum. Otaviano Augusto o constriu para abrigar seus restos mortais. Vieram os bárbaros, e foi demolido, com o resto. Como Augusto, o primeiro grande imperador de Roma, imaginaria a queda de Roma e de todo o mundo como ele conhecia? Na idade das trevas roubaram as cinzas do Imperador. No século 12, foi uma fortaleza, depois, uma arena de touros, mercado de muambas. Hoje é banheiro de mendigos. É conhecido como um dos lugares mais sossegados e solitários de Roma. A cidade cresceu ao seu redor ao longo dos séculos. Como uma ferida, um coração partido ao qual você se apega, pois a dor é boa, todos queremos que as coisas permaneçam iguais, vivemos infelizes com medo de que uma mudança estrague tudo. Aí, eu lembrei da história daquele lugar, o caos que ele suportou, o modo como foi adaptado, queimado, abandonado, devastado e construído e me tranquilizei. Talvez minha vida não tenha sido tão caótica. O mundo que é, e a armadilha é nos apegarmos às coisas. A ruína é o caminho que leva à transformação. Devo estar, devemos estar preparados para as intermináveis ondas de transformação.
Se nossa percepção fica aguçada quando absorvemos o novo, como encontrar o espírito do lugar na cidade em que vivemos? O guardião que se esconde na mecanicidade da rotina? Eu acredito que é um grande desafio, pois exige da gente um treinamento aguçado do olhar. Além disso, essa atividade é ainda mais dificultada se pensar em centros urbanos, em localidades em que muito da história se perdeu na demolição de edifícios antigos e no abandono de hábitos e costumes culturais. O segredo pode estar na reflexão de Liz – precisamos estar preparados para as transformações em nossas vidas e nos lugares em que vivemos. As identidades culturais, sociais e urbanas sempre estão em constante ebulição. Elas permanecem. Mudam. Agregam. Reconstroem.
Alguns anos atrás, tive uma experiência bastante peculiar ao tentar perscrutar o guardião de minha cidade, uma localidade do sul do Brasil. Na época, eu precisava produzir algumas fotografias para me inscrever em um concurso sobre o Patrimônio Histórico da cidade de Ponta Grossa. Assim, fiz um itinerário, imprimi uma lista de todos os edifícios tombados, convidei minha avó para a aventura e passamos uma tarde caminhando pela cidade e fotografando construções antigas. Foi a combinação perfeita! Enquanto eu fotografava, minha avó me contava um pouca da história de cada prédio. Eu percebia as sutilezas do genius loci que normalmente não notava quando estava concentrada nos compromissos da rotina.
Vovó me chamava a atenção para os detalhes: a chaminé que guarda o passado industrial de um bairro, os anos de construção presentes nas fachadas, o prédio que antigamente abrigava o correio onde trabalhara seu pai, meu bisavô. Era a minha própria história já misturada com o espírito do lugar antes mesmo de eu nascer… vocês podem imaginar essa loucura?
Edifício construído pelo alemão Guilherme Naumann em 1906 na cidade de Ponta Grossa – Brasil. Meu bisavô trabalhou aqui nas décadas passadas * Building built by German Guilherme Naumann in 1906 in the city of Ponta Grossa – Brazil. My great-grandfather worked here in the past decades.
Agora convido vocês para procurar o genius loci onde vivem e em suas viagens pelo mundo afora. É sempre uma jornada emocionante! Para inspirá-los, indico o clipe da música Porz Goret, de Yann Tiersen. Essa canção faz parte do álbum Eusa, um projeto incrível do compositor francês do ano de 2016, no qual ele faz um mapa musical de Ushant, a ilha em que nasceu. Não deixem de compartilhar suas experiências com a gente, estamos ansiosas para saber de suas aventuras.
Gigi Eco
In search of the city guardian
You know when we are traveling and we are surprised by an overwhelming feeling, but we can not quite understand the reason? When Ca Amatti told me about the concept of genius loci – the spirit of a place – I was soon fascinated. It is a concept of architecture of Latin origin, which refers to the genius of the home, that is, that deity that holds a place and configures the characteristics and identities of the space in which it is. It’s what makes a place unique.
From that moment, I began to look for this guardian who lurks in the daily and distant places through which I walk. It is a search that is not always easy. Often the genius loci may be quite visible in ancient cities and ruins, in others it may be hidden in the subtleties of a chaotic daily life of large cities.
When we are traveling in unknown lands, it may be easier to feel the presence of the spirit that keeps a locality, even if we do not speak the language or know in depth information about the region. In this moment of adventure, we are no longer in the “automatic mode” of routine and all our senses are sharp. We step out of our comfort zone and embrace the new. We feel how the genius loci adapts to all transformations over time.
I remember especially the reflection of the character Liz Gilbert in Eat, Pray, Love on a ruin of the city of Rome:
“[…] the other day, I heard an incredible story, it’s called the Augusteum. Octavian Augustus built it to house his remains. The barbarians came, and it was demolished, with the rest. How could Augustus, the first great emperor of Rome, imagine the fall of Rome and of the whole world as he knew it? In the Dark Ages they stole the Emperor’s ashes. In the 12th century, it was a fortress, later, an arena of bulls, market of contraband. Today is beggar’s bathroom. It is known as one of the quieter and loneliest places in Rome. The city has grown around it over the centuries. Like a wound, a broken heart to which you cling, because the pain is good, we all want things to remain the same, we live unhappy for fear that a change will ruin everything. Then I remembered the history of that place, the chaos it endured, the way it was adapted, burned, abandoned, devastated and built, and I calmed down. Maybe my life has not been so chaotic. The world that it is, and the trap is to cling to things. Ruin is the way to transformation. I must be, we must be prepared for the endless waves of transformation.
If our perception is sharpened when we absorb the new, how can we find the spirit of the place in the city in which we live? The guardian who hides in the mechanicity of routine? I believe it is a great challenge because it requires us to have a keen eye training. Moreover, this activity is even more difficult if we think of urban centers, places where much of history has been lost in the demolition of old buildings and in the abandonment of cultural habits and customs. The secret may lie in Liz’s reflection – we need to be prepared for the transformations in our lives and the places we live in. Cultural, social and urban identities are always in constant change. They remain. They transform. They add. They rebuild themselves.
A few years ago, I had a rather peculiar experience in trying to peer at the guardian of my city, a town in southern Brazil. At the time, I needed to produce some photographs to apply for a contest on the Historic Heritage of the city of Ponta Grossa. So I made an itinerary, printed a list of all the historic buildings, invited my grandmother to the adventure and spent an afternoon walking around the city and photographing old buildings. It was the perfect match! While I photographed, my grandmother told me a little of the history of each building. I could see the subtleties of the genius loci that I normally did not notice when I was concentrating on the routine commitments.
Grandma called my attention to the details: the chimney that keeps the industrial past of a neighborhood, the years of construction on the facades, the building that once housed the mail where her father, my great-grandfather, had worked. It was my own story already mixed with the spirit of the place before I was even born… can you imagine this madness?
Now I invite you to look for the genius loci where you live and on your travels around the world. It’s always an exciting journey! To inspire you, I point out the music video Porz Goret by Yann Tiersen. This song is part of the album Eusa, an incredible project of the composer of the year 2016, in which he makes a musical map of Ushant, the island in which he was born. Do not forget to share your experiences with us, we are eager to hear from your adventures.
Gigi Eco
Viajar é vir ao já.
GK
Eu não tenho muita experiência com viagens, e este blogue pode ter vindo a calhar nesta quadra de minha vida.
Não tenho, portanto, certeza do que vou dizer agora (como de costume), mas ouvi falar que, ao contrário de Castro, que decidiu explorar o turismo histórico, Ponta Grossa destruiu muito de sua memória.
E vocês duas são justamente de lá.
Acredito que a cidade as gerou impelida pela necessidade urgente do socorro de vocês…
Obrigada por estar nos acompanhando, Paulo! Realmente muito da memória de PG se perdeu se pensarmos nos edifícios históricos. Precisamos treinar o olhar para encontrar esses pequenos tesouros escondidos no caos urbano. Esperamos contribuir um pouquinho para a preservação dessa memória. E que a gente sempre possa enxergar a cidade com olhos de poesia! 🙂
Gugu Keller, você disse tudo! 🙂
Primeiramente gostaria de parabenizá-las pelo texto, como sempre gostoso de se ler. Eu conversava essa semana com o tio de vocês, justamente sobre isso. Estávamos lembrando que há cerca de um ano fomos a Campinas (buscar o Juca), mas na correria daquela viagem, com caráter de passagem pela cidade repleta de edifícios, que nos permitiu uma única observação que foi compará-la à Curitiba; não nos ativemos (acho que isso é mais comum do que imaginamos ou gostaríamos) ao que remanescia ali, contando em alto – literalmente – e bom tom mais de um século de história. As palmeiras imperiais que foram plantadas no século XIX onde antigamente era um lixão. Elas podem contar muitas coisas, mas infelizmente descobrimos sobre elas num programa de TV, e não quando estávamos lá. Dá para saber mais sobre essa história (inclusive sobre a segregação racial que as palmeiras representavam) nesse link que vou lhes passar: http://republicadecampinas.com.br/2016/06/27/palmeiras-imperiais-pela-republica/
Beijo meninas! Amo o blogue de vocês. Sou fã não só do conteúdo, mas de toda atmosfera que criaram! ;*
Tay, obrigada pelo carinho! Agradeço também por compartilhar com a gente sua experiência e reflexão sobre a viagem para Campinas. É emocionante quando descobrimos esses pequenos detalhes e histórias dos lugares pelos quais passamos, né? O grande desafio é esse que você comentou, treinar o olhar para perceber essas peculiaridades enquanto estamos em movimento… é difícil, mas sempre gratificante. Muito interessante a história das palmeira imperiais, com certeza vou conferir! Beijos, Gigi
Tay, fico imensamente feliz por você estar acompanhando as nossas viagens literárias e por ter compartilhado a história incrível das palmeiras imperiais, elas são as testemunhas vivas e simbólicas de tantas mudanças na cidade. De fato, são para detalhes como esse que precisamos manter o olhar sempre atento. Ver a vida com olhos apaixonados. Um abraço forte, com saudades!! :*
Agradeço também pela dica musical; já vi este vídeo 'trocentas vezes!
Yann Tiersen é incrível, né? <3