Expedição ao Fim do Mundo – Diário de bordo

Trecho 2: de Foz do Iguaçu a Bariloche

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Esse foi um trecho longo de viagem. Deixamos para trás o Brasil. Cruzamos a Argentina, passamos por inúmeras províncias diferentes. Da janela do carro, observamos a paisagem mudar. O verde e calor intenso da região de Misiones deu lugar a pradarias, lagos e girassóis nas proximidades de Trenque Lauquen. A medida que íamos cada vez mais em direção ao sul e às montanhas andinas as cores se tornavam mais áridas, a vegetação ia diminuindo e a sensação era de estar em um cenário de filme de ficção científica espacial. Esse já era o começo da Patagônia.

Os primeiros dias em território argentino foram marcados por longas distâncias, longas horas no carro, um calor extenuante de 42-43 graus e nosso primeiro contato e primeiras impressões sobre a Argentina e sua cultura. Foi também um momento para nos adaptarmos à viagem em comboio: testar o uso dos rádios para comunicação, verificar os adesivos no carro de identificação do grupo, manter uma distância segura do carro que vai a frente e nunca perder de vista o carro que vem atrás.

Aprendemos a curtir as paradas da estrada – apesar de nem sempre apresentarem as condições ideias e quase sempre existirem filas, era uma oportunidade para fortalecer e criar laços de amizade, ouvir e contar histórias e criar novas também. Neste relato, compartilhamos o nosso roteiro e um pouco do que vivenciamos no percurso.


Dia 4 – 29/12/2019

Saída de Foz do Iguaçu, visita às ruínas jesuíticas de San Ignacio Miní e chegada a Posadas, na Argentina – 320km

Saímos cedo, antes do nosso grupo, pois primeiramente íamos deixar meu marido no aeroporto. De Foz do Iguaçu, ele já ia voltar para a Polônia. As despedidas nunca são fáceis, mas o tempo passa e logo elas dão lugar aos reencontros. No final deste trecho de viagem, em Bariloche, mais uma vez íamos nos separar do grupo para ir ao aeroporto. Desta vez, para saudar Gigi, que seguiria conosco até o Fim do Mundo.

Neste dia nos reunimos ao grupo ao passar pelo controle de fronteira da Argentina. Nessas horas é uma vantagem estar viajando em um grupo organizado e com todos os documentos preparados com antecedência. Por termos todas as informações necessárias à mão, a entrevista com os guardas foi tranquila, apesar de não muito rápida.

Como fomos um dos primeiros a cruzar a fronteira e o processo estava demorando por causa das filas, fizemos uma pequena parada na cidade de Puerto Iguazu. Paramos em uma loja de vinhos à beira da estrada. Não é novidade que na Argentina encontramos ótimos vinhos por preços muito vantajosos em relação ao Brasil. Nesse sentido, Puerto Iguazu é um ótimo local para compras, especialmente por estar localizado tão perto da fronteira brasileira.

Logo depois, passamos no posto YPF para tomar um cafezinho. Nos deparamos com um aspecto cultural muito peculiar: as máquinas de água quente para preparar o mate. Elas estariam presentes em praticamente todas as paradas! Pouco depois, o grupo já estava todo reunido e seguimos viagem. Paramos na pequena cidade de San Ignacio para almoçar e visitar as ruínas da missão jesuítica de San Ignacio Miní. Essa foi a primeira refeição em território argentino e, embora o restaurante fosse bastante modesto, já ficamos impressionados pelo sabor e qualidade da carne bovina.

Bastou atravessar a rua a partir do restaurante para visitar o parque que abriga as ruínas. O sol e o calor estavam tão intensos que desencorajaram parte do nosso grupo. Como arquiteta restauradora, não poderia deixar de visitar esse patrimônio cultural único. Peguei um guarda-chuva (para me proteger do sol), água e protetor solar e junto de Diogo, meu irmão, fomos até a entrada do parque. O espaço aberto para visitação conta com uma pequena área expositiva, o Museu Jesuítico de San Ignacio Miní e as ruínas propriamente ditas.

Essa missão foi reconstruída na Argentina no início da década de 1630, após o assentamento original, no norte do Paraná, ter sido destruído pelos bandeirantes. É um dos exemplares mais relevantes entre as 30 missões jesuíticas encontradas na região fronteiriça entre Brasil, Argentina e Paraguai. No parque pudemos apreciar esse estilo de arquitetura peculiar e único, denominado barroco guarani – um estilo híbrido que mescla elementos culturais do jesuíta europeu com os elementos da cultura nativa indígena.

Em San Ignacio pudemos observar também a dimensão e organização espacial do complexo missionário. Os edifícios eram construídos ao redor de uma ampla Plaza de armas. Ao centro de uma das faces da praça se encontram os vestígios da igreja com uma fachada espetacular e detalhes esculpidos na pedra. O claustro, assim como espaços de uso comum, como a cozinha, o refeitório e as salas de aula, se encontram próximos à igreja. Nos outros lados da praça estavam localizadas as habitações dos indígenas.

A missão de San Ignacio Miní foi inscrita na lista do Patrimônio Mundial da Humanidade pela UNESCO em 1984.

Detalhes das ruínas da missão jesuítica de San Ignacio Miní

Depois da visita às ruínas seguimos para a cidade de Posadas, capital da província de Misiones, localizada às margens do rio Paraná. O rio é a divisa natural com o Paraguai e uma ponte conecta os dois países. Do outro lado do rio avistamos a cidade paraguaia de Encarnación.

Tínhamos apenas o fim de tarde para conhecer a cidade e fizemos um passeio pela Avenida Costanera, ao longo da qual pudemos observar as praias nas margens do rio, repletas de gente se refrescando do calor. Um ponto de destaque nesse percurso é o Monumento Andres Guazurari, capitão de ascendência guarani que defendeu as margens argentinas do Rio Paraná. Adoramos o espírito tranquilo e alegre da cidade. Fomos dormir cedo, pois no dia seguinte teríamos longos quilômetros para cumprir.

O monumento Andres Guazurari às margens do rio Paraná e ao longe a cidade paraguaia de Encarnación

Dia 5 – 30/12/2019

Saída de Posadas e chegada a Santa Fé – 780km

780 quilômetros em um dia não é pouca coisa. Mas a estrada nos aguardava com uma surpresa. No trajeto até Santa Fé pudemos observar uma rara e sinistra formação de nuvens. Trata-se da nuvem Arcus do tipo rolo – uma extensa e solitária nuvem em formato tubular, baixa e horizontal. Esse tipo de nuvem se forma devido à combinação de ventos em altitudes diferentes e direções contrárias e são geralmente associadas a tempestades. Foi uma experiência surreal observar esse fenômeno natural acima das nossas cabeças.

Nuvem Arcus do tipo rolo

Dia 6 – 31/12/2019

Saída de Santa Fé e chegada a Trenque Lauquen – 661km

Santa Fé é uma cidade vibrante e agradável, bem arborizada, repleta de espaços culturais e gastrônomicos. Sentimos muito por não poder ficar mais tempo aqui para explorá-la.

Paisagem da janela do carro

No final da tarde chegamos a Trenque Lauquen. Nosso hotel ficava afastado da área urbana e celebramos ali o espírito viajante e a chegada do Ano Novo junto com nossos companheiros de jornada.


Dia 7 – 01/01/2020

Trenque Lauquen

Depois de dois dias de longas horas na estrada, tiramos um dia para recarregar as baterias, para os motoristas descansarem e para mentalizar os caminhos abertos e as próximas viagens do ano. Aproveitamos para conhecer as redondezas. Vimos as plantações de girassóis, os flamingos ao longe nos lagos da região. Também visitamos o centro da cidade. Passeamos pelo Parque Municipal com seu lindo lago. Caminhamos pela Plaza San Martín e oramos na Igreja Nossa Sra. das Dores. E terminamos o primeiro dia do ano assistindo o entardecer no delicioso restaurante Los Caminos del Vino.

Plaza San Martín no centro de Trenque Lauquen
Igreja Nossa Sra. das Dores em Trenque Lauquen
Celebrando a vida e assistindo o entardecer no delicioso restaurante Los Caminos del Vino

Dia 8 – 02/01/2020

Saída de Trenque Lauquen e chegada a Neuquén – 772km

Esse foi mais um dia longo de viagem. Chegamos cansados da estrada e do calor em Neuquén, capital da província de mesmo nome e uma das cidades mais importantes da Patagônia.


Dia 9 – 03/01/2020

Saída de Neuquén, visita ao Museu Paleontológico na Villa El Chocón e chegada a Bariloche – 438km

Saímos cedo de Neuquén. Logo ao sair do hotel avistamos um senhor com as características do que seria para nós um típico “patagônico”, o habitante natural destas terras – um senhor sereno e tranquilo com a tradicional boina na cabeça.

O patagônico

A apenas uma hora de Neuquén fizemos uma parada na Villa El Chocón, pequena localidade próxima à represa e à usina hidroelétrica El Chocón, no rio Negro. Fomos até lá para visitar o Museu Paleontológico Municipal Ernesto Bachmann e conhecer um pouco da história dos dinossauros na Patagônia.

Poucos sabem, mas a Patagônia argentina abriga os depósitos fósseis de alguns dos maiores dinossauros do mundo. As províncias de Chubut, Neuquén e Río Negro são ricas em vestígios fósseis do período Cretáceo (que vai de 145 a 65 milhões de anos atrás). Além do museu que visitamos, há outros que foram criados com o intuito de abrigar os achados mais importantes.

A primeira sala do museu Ernesto Bachmann é uma das mais interessantes, pois revela o esqueleto de um dos maiores dinossauros carnívoros já descoberto – o Giganotosaurus carolini (réptil gigante do sul). Ele é o equivalente sul-americano do Tiranosaurus rex, com 14m de comprimento e 8 toneladas. Esses vestígios foram encontrados a poucos quilômetros da Villa El Chocón. Parte do seu nome é uma homenagem ao seu descobridor Rubén Carolini, funcionário da Hidronor S.A., que sempre acompanhava os paleontólogos em seus trabalhos de campo durante a construção de usinas hidrelétricas no território da Patagônia.

Em outras salas do museu pudemos observar réplicas dos esqueletos e dinossauros em seu tamanho real. É impressionante imaginar a sua presença feroz, com mandíbulas enormes e seus movimentos pesados, mas ágeis. Além da exposição permanente, o museu oferece atividades interativas para crianças, como a oficina Paleontólogos por un día.

Quando tomamos consciência de todo esse passado, é impossível não imaginar os dinossauros correndo sobre as estepes – sua cor se fundindo com a paisagem lunar em tons de ocre e cinza. O que conhecemos hoje é apenas uma pequena parte de todos os mistérios escondidos no solo da Patagônia. Certamente muito ainda espera para ser descoberto.

Após a visita ao museu fizemos um passeio sobre a barragem da usina hidroelétrica de El Chocón. O contraste do azul das águas com as cores terrosas da paisagem ao redor hipnotizam nosso olhar. A partir daí seguimos a viagem em direção a Bariloche.

As paisagens que passamos a ver da janela do carro mudaram radicalmente em relação aos dias anteriores. A natureza se tornou mais árida e a presença humana praticamente desapareceu, não fosse pelos outros viajantes que cruzaram nosso caminho, que não eram muitos. Nenhum posto, nenhum restaurante ou lanchonete. Por longos quilômetros a estrada se mantinha absolutamente reta cortando as estepes desérticas. Lá fora ouvíamos o som do vento ao bater no carro.

Nesse momento, começamos a sentir uma reverência pelas imensidões – aquela lá fora, com a linha da estrada que segue perpendicular ao horizonte, e aquela outra imensidão que habita o nosso peito e nos impulsiona a ir além.

Seguimos na estrada admirados por algumas horas, depois das quais começamos a nos perguntar se haveria um banheiro, um lugar para abastecer o carro e tomar um cafezinho. A partir de Neuquén e rumo cada vez mais ao sul as paradas são poucas ao longo do caminho, o que de certa forma as torna únicas. Elas se tornam pontos de encontro, apoio e aconchego para os viajantes.

A medida em que nos aproximávamos de Bariloche, nossos corações batiam mais acelerados pela chegada de Gigi no fim da tarde. Finalmente o nosso clã, a Celinskada, estaria completo!

Bariloche nos encantou com a sua beleza assim que chegamos. O seu reflexo no imenso lago Nahuel Huapi aos pés dos Andes nos remeteu instantaneamente às belas cidadezinhas alpinas italianas. Além da natureza de incrível beleza, adoramos a aura animada e aconchegante da cidade, com inúmeros restaurantes e lojas com produtos artesanais e regionais e uma excelente infra-estrutura de apoio ao turista.

No fim da tarde fomos ao aeroporto esperar pela chegada de Gigi. Não há nada como o reencontro e a família toda reunida! De volta à cidade celebramos com um jantar especial o presente de estarmos juntos em um lugar tão lindo.

As estrelas sorriram sobre nós.


Não perca a próxima parte da nossa viagem, onde Gigi vai levá-los em um passeio por Bariloche e seu arredores! A seguir deixamos alguns links e informações úteis para quem deseja visitar os lugares pelos quais passamos:

Ruínas jesuíticas de San Ignacio Miní
N3322 San Ignacio, Misiones, Argentina
Aberto todos os dias, das 7h às 19h

Museu Paleontológico Municipal Ernesto Bachmann
Acceso Centro al Cívico (8311) Villa El Chocón, Neuquén, Argentina
Aberto todos os dias, das 8h às 20h

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Written by Ca Amatti
Ca Amatti é arquiteta restauradora, apaixonada pelos edifícios antigos, por viagens e artes gráficas. Tem saudades do futuro, mas ama os vestígios do tempo no mundo. Atualmente reside em Varsóvia, protegendo velhos palácios e monumentos dos efeitos devastadores do tempo e do esquecimento.