Eu e Gigi somos descendentes de imigrantes. O que quer dizer que há algumas gerações atrás nossos bisavós e tataravós tiveram a coragem de deixar para trás todo um mundo familiar e conhecido e partir em busca de uma nova vida em um continente totalmente novo, em tempos em que as cartas eram a melhor forma de comunicação à distância.

Vovô David, nosso avô materno, é um reconhecido genealogista a nível nacional. Ele pesquisou a história de seus antepassados e também dos antepassados de vovó Estela, em uma busca emocionante que o levou a percorrer antigas estradas na Espanha, em Portugal e na Itália. Os resultados de suas pesquisas foram publicados em inúmeros livros (mais informações no site de vovô). Influenciada por vovô, meu primeiro contato direto com nossas raízes aconteceu na Itália. Eu e Gigi fomos para lá por ocasião de um curso para jovens descendentes de italianos da região do Val Camonica financiado pela Associazione Gente Camuna. O Val Camonica é um vale lindo localizado no norte da Itália, no meio dos Alpes, próximo à fronteira com a Suíça. É desse vale que Giovani Battista Pilatti, nosso tataravô, emigrou em 1889 inicialmente para a Argentina e logo depois para o Brasil.

Nessa viagem passamos alguns dias em Sonico, cidade natal de Giovani, com a família de G. Branchi, amigo e primo de vovô David. Conhecemos a casa em que viveu nosso tataravô, percorremos os mesmos caminhos que ele percorreu, oramos na igreja em que ele foi batizado. Foi uma experiência transformadora. A gente reflete sobre como as decisões individuais de tantas pessoas morando em países diferentes culminaram com o encontro dos nossos avós e dos nossos pais no sul do Brasil. A gente se dá conta de como a história poderia ser facilmente bem diferente: um momento de indecisão, um problema na estrada, uma doença que implicou na perda da partida do navio… e então nós nem estaríamos aqui!

Casa em que viveu Giovani Battista Pilatti, em Sonico na Itália.

Nós não chegamos a conhecer nossos antepassados imigrantes. Conheci apenas o pai de vovó Savina, nosso bisavô paterno Jan (João) Winiarski. No entanto, minhas lembranças são vagas, pois era muito pequena quando ele faleceu. Jan não foi um típico imigrante polonês. A maioria dos imigrantes poloneses que se instalaram no sul do Brasil vieram com toda a família na segunda metade do século XIX. Jan fez parte de uma imigração posterior, imigrando sozinho como único membro de sua família no período entre guerras. Como a maior parte dos imigrantes, Jan partiu porque as condições de vida onde vivia eram muito difíceis e porque viu na mudança a oportunidade de construir um futuro melhor. A esses motivos se somam outros familiares que só fomos descobrir muito tempo depois.

Buscar as nossas origens não é uma tarefa fácil. Com o passar das gerações e a falta de registro das histórias de família muitas informações preciosas se perdem. Por isso, como aconselha vovô David, experiente genealogista, é preciso conversar com os mais velhos (e registrar as conversas) – eles são a melhor fonte de informação.  Visitas a cartórios e igrejas também são fundamentais para obter documentos oficiais como certidões de nascimento, batismo e casamento. É como o trabalho de um detetive, que a partir de diferentes fontes busca reconstuir uma história.

Nossos bisavós, Ana e Jan Winiarski.

No caso de Jan, nós tínhamos uma série de documentos originais poloneses, mas levou algum tempo até conseguirmos decifrá-los. Sabíamos que ele veio da região de Lublin, mas de onde exatamente ninguém sabia dizer. Tínhamos também uma carta extremamente comovente que a irmã mais nova de Jan, Franciszka, enviou para ele no Brasil. Na carta, podemos sentir como as condições de vida no campo eram penosas com inversos bem rigorosos, em que animais morreram e algumas pessoas tiveram pernas e orelhas congeladas. Jan havia escrito para a família que há nove anos não via a neve. Franciszka diz na carta que gostaria de enviar um pouquinho para ele. Embrulhou em uma caixa e levou ao correio, porém quando chegou lá, só havia água.

Trecho comovente da carta de Franciszka para Jan, escrita em 1937.

Quando vim morar na Polônia pela primeira vez para fazer um curso de pós-graduação decidi aproveitar a ocasião para investigar mais a fundo a história da nossa família. É incrível como durante essa busca a nossa intuição se aguça e é como se alguém estivesse realmente nos guiando nessa jornada.  Na caderneta militar e no passaporte de Jan constava o nome de uma localidade (nessa época já conseguia ler coisas básicas em polonês) chamada Wólka Łańcuchowska.

Passaporte e caderneta militar de Jan Winiarski, onde consta o nome da localidade de Wólka Łańcuchowska (em destaque).

Digitei o nome no Google maps, que apontou para uma estrada rural próxima a Lublin ao lado de um rio sinuoso. Na imagem de satélite apareciam umas poucas casas e um cemitério ao longo de uma única rua localizada paralela ao rio. Será que era esse o lugar de onde veio Jan? Contei toda a história para uma colega da fundação de que era bolsista na época (Dzieło Nowego Tysiąclecia) – Aleksandra Gałka, cuja família mora nos arredores de Lublin.  Sou imensamente grata a ela e a seu pai que me levaram em uma viagem de descoberta das minhas raízes até Wólka Łańcuchowska.

Nós não sabíamos o que iríamos encontrar, se encontraríamos de fato alguma coisa. Lembro de como estava ansiosa e ao mesmo tempo confiante na manhã em que partimos para lá. Nosso plano era parar a primeira pessoa que víssemos na única rua de Wólka Łańcuchowska e perguntar pela família Winiarski. E assim fizemos. Havia um senhor no jardim de uma das primeiras casas. Fomos até ele e explicamos o motivo de nossa vinda e ele nos convidou a entrar. Depois de uma conversa inicial ele achou que o melhor seria conversar com um casal mais idoso. Eles certamente poderiam se lembrar de alguma coisa.

Atravessamos a rua e fomos recebidos por um simpático casal. Eles confirmaram que algumas famílias haviam emigrado nessa época e que um jovem da família Winiarski emigrou junto com uma família vizinha. Eles disseram que a propriedade dos pais de Jan pertencia ainda à família, a uma das irmãs de Jan (a irmã Franciszka, que lhe escreveu a carta!). O sobrenome, no entanto, havia mudado, pois ela adotara o sobrenome do marido após o casamento.

Franciszka Mileszczyk, irmã de Jan, em frente à antiga casa em Wólka Łańcuchowska.

Franciszka residiu em Wólka Łańcuchowska até a sua morte em 2014, poucos meses antes da nossa visita. O casal idoso comentou no fim de nossa conversa que uma das filhas de Franciszka, que morava em Lublin, costumava passar alguns finais de semana em Wólka e que talvez ela pudesse estar lá. Nessa hora, o coração, que já estava batendo acelerado, deu um salto. Fomos até lá, a última casa do lado do rio antes do cemitério.

O primeiro senhor que encontramos, que estava nos acompanhando o tempo todo, falou: “Esperem aqui um instante. Ela não é uma senhora tão jovem e vou prepará-la para a notícia de que vocês estão aqui.” Quando eles saíram da casa, tia Katarzyna – a sobrinha de Jan – veio com os braços abertos nos receber e eu tive a nítida sensação de que ela estava nos esperando, que esse era um encontro esperado há décadas. Conversamos, olhos brilhando. Mostramos fotografias antigas. Mostrei a ela a carta de Franciszka, sua mãe, para Jan. Ela nos mostrou uma carta que Jan havia enviado para Franciszka. Caminhamos pela propriedade, tia Katarzyna nos mostrou onde ficava a antiga casa, fomos até o rio (onde Jan costumava se banhar no verão). Depois fomos juntos ao cemitério, onde estão sepultados vários familiares, entre eles o pai de Jan, Stanisław Winiarski.

Katarzyna, filha de Franciszka Mileszczyk, e Ca Amatti em Wólka Łańcuchowska.

No cemitério de Wólka Łańcuchowska, junto ao túmulo do pai de Jan, Stanisław Winiarski.

Esse é o tipo de experiência que nos marca para sempre. Tenho certeza de que Jan e Franciszka estavam sorrindo lá em cima com os olhos brilhando sobre o nosso encontro. Como é possível a vida voltar ao normal depois de um acontecimento tão extraordinário? Ela não volta – ela se amplia, ganha uma nova dimensão. Aprendemos sobre o quanto são fortes os laços invisíveis que unem uma família, ultrapassando literalmente oceanos e gerações. E, a medida que o tempo passa, sinto uma reverência cada vez maior por todos aqueles que vieram antes de mim – aqueles mais próximos, meus pais e avós, e aqueles mais distantes e que não tive a oportunidade de conhecer. Quando me sinto insegura ou com medo de tomar uma decisão me pergunto o que eles teriam feito no meu lugar e sei que a coragem que eles têm e tiveram está em mim e que nada vai me impedir de seguir os meus sonhos.

Encontro histórico da família brasileira e polonesa em Wólka Łańcuchowska, 2017.

Junto com papai na terra do seu avô.

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Written by Ca Amatti
Ca Amatti é arquiteta restauradora, apaixonada pelos edifícios antigos, por viagens e artes gráficas. Tem saudades do futuro, mas ama os vestígios do tempo no mundo. Atualmente reside em Varsóvia, protegendo velhos palácios e monumentos dos efeitos devastadores do tempo e do esquecimento.