Sobre incêndios, memória e patrimônio
A construção do templo iniciou-se na segunda metade do século XII e só foi concluída 180 anos depois. A catedral tornou-se internacionalmente popular a partir da novela escrita em 1831 por Victor Hugo O Corcunda de Notre-Dame, onde Quasímodo, personagem principal, era responsável por tocar o sino. O interesse que surgiu a partir da história foi tão grande que decidiram restaurar a catedral. As obras foram executadas entre os anos de 1844 a 1864 e supervisionadas pelo autor do projeto de restauração, o arquiteto Viollet-le-Duc.
Foi durante esse período que foi construído o pináculo central, ponto mais alto do templo que alcançava a altura de 93 metros. Le-Duc foi também um importante teórico no campo da restauração de monumentos históricos. Ele conferia uma grande importância à história das técnicas construtivas, à honestidade dos materiais e defendia a busca pela unidade estilística do monumento. Além disso, tinha grande interesse pela arquitetura gótica e medieval. Foi buscando a unidade estilística que conduziu o restauro da catedral de Notre-Dame.
Durante o grande incêndio que ocorreu no início dessa semana, não só o pináculo central da igreja foi completamente destruído, mas também parte das abóbadas. O telhado, bem como a estrutura da cobertura, colapsaram. O interior foi parcialmente danificado. O governo francês rapidamente declarou o lançamento de um concurso internacional de arquitetura para a reconstrução da igreja, incluindo o marcante pináculo central. E então surge o familiar dilema para nós, arquitetos restauradores: como reconstruir o que foi destruído? Reconstruir de forma fiel ao estado original ou modernizar, reconstruindo, porém, com linguagem e materiais contemporâneos?
As teorias vigentes hoje no campo da restauração prezam mais pela segunda opção, pois acredita-se que a utilização de técnicas contemporâneas confere maior autenticidade ao monumento ao evitar o que chamamos de falso histórico – elementos que parecem tão antigos quanto os originais, porém são acréscimos atuais. O caso da catedral de Notre-Dame apresenta-se especialmente particular justamente pelo fato de o edifício ter passado anteriormente por um restauro que é parte importante da história da arquitetura, conduzido por um dos maiores teóricos da restauração de todos os tempos – Viollet-le-Duc. Certamente, a reconstrução da igreja será um grande desafio não só no campo conceitual, mas também executivo.
A destruição parcial de uma obra que integra o patrimônio mundial da humanidade e é ao mesmo tempo tão importante para a vida local parisiense nos coloca em frente aos questionamentos sobre o significado do nosso patrimônio e legado. E talvez, mais importante, nos leva a refletir sobre como queremos transmitir esse patrimônio para o futuro. Há alguns meses atrás também sofremos com os danos e a perda do acervo do Museu Nacional no Rio de Janeiro devido a um incêndio.
Durante minha experiência trabalhando com patrimônio histórico percebo que, muitas vezes, os monumentos acabam recebendo pouca atenção em nossa corrida vida diária. Nós nos acostumamos ao fato de que eles perduram, de que eles estão sempre ali para nós, apesar de todas as intempéries e do passar dos anos. Porém, em momentos em que a sua integridade física encontra-se subitamente ameaçada, a sua importância para a manutenção da memória e da identidade de um grupo se revela em toda a sua amplitude.
É como se os edifícios antigos nos dessem um sentido de estabilidade, de continuidade em um mundo que muda tão depressa. Quando vemos que eles não são imutáveis e que podem desaparecer rapidamente, de certa forma é como se nos lembrassem da nossa própria vulnerabilidade. Que esses acontecimentos nos façam voltar nossos olhos para aquilo que é nosso patrimônio e como cuidamos dele. Você conhece os monumentos da sua cidade? Quando foi a última vez que você passou por eles? Compartilhe com a gente aquele lugar ou monumento que te passa o sentimento de pertencimento.
O texto está magnífico. Fiquei pensando na sensação que é retornar à minha cidade depois de uma viagem. A paisagem dos Campos Gerais, o pôr do sol, os granitos de Vila Velha. Tudo me traz a sensação de pertencimento. Lembrei também da tristeza sem fim que senti quando a velha catedral foi demolida para a construção de outra mais moderna em seu lugar. Era um belo patrimônio que deixamos escapar, sem coragem de lutar pela sua preservação.
Ca, esse texto está maravilhoso, parabéns! Um dos melhores que eu li sobre a Notre-Dame. Pensando sobre os monumentos que me passam um sentimento de pertencimento, não posso deixar de pensar na árvore torta em frente à Caixa Econômica na cidade de Ponta Grossa. É um exemplo de resiliência perante às ações do homem e um lembrete de que as casas de meus avós estão próximas, basta caminhar alguns passos. 🙂