Sobre gratidão e as conquistas da vida (ou uma conversa interna com a Gigi da infância)

Na última quarta-feira, foi o dia de minha posse na Academia de Letras dos Campos Gerais. Essa grande conquista me fez refletir um pouco sobre minha trajetória. Ao longo de nossa jornada nesse planeta azul, talvez uma das perguntas mais importantes que possamos fazer a nós mesmos seja essa: Aquela criança de quatro, seis, dez anos de idade estaria orgulhosa de você hoje? De alguma forma você honrou a essência e os sonhos que aquele pequeno ser (que ainda vive dentro de você) cultivou? E quando eu estou falando de “honrar nossos sonhos infantis”, não estou querendo dizer que precisamos ter como meta de vida se transformar em um super-herói com direito a capa, ou virar estrela de Hollywood, ou construir uma máquina do tempo ou quem sabe ter uma nave espacial para viajar por todas as galáxias desse universo.

Acho que honrar nossos sonhos infantis significa saber que aquela criança de vinte, quarenta ou setenta anos atrás estaria sorrindo para você hoje pelas escolhas e caminhos (por vezes sinuosos) que você tomou. Ela estaria orgulhosa do engenheiro que você se tornou, criando soluções para problemas complexos. Ou estaria radiante de saber que você produz os pães e bolos mais deliciosos do bairro. Ou estaria simplesmente extasiada pelo fato de que você abraçou como missão de vida salvar a vida das pessoas por meio da Medicina. Acima de tudo, ela estaria orgulhosa de você por ter honrado seus valores e sonhos mais profundos de algum forma, perseguindo esse encantamento pela vida tão presente na infância e que na vida adulta muitas vezes nos escapa.

Nos últimos meses, me peguei pensando nisso…  Em novembro do ano de 2018, aconteceu na Biblioteca Municipal de Ponta Grossa a premiação do Concurso Literário da Academia de Letras dos Campos Gerais, no qual minha poesia O Olho do tempo recebeu menção honrosa. Compartilho esse poema com vocês a seguir:

O OLHO DO TEMPO

Enxerguei-me no espelho.

De relance

encarei o tempo,

todo matreiro,

que me espiava

de volta.

No instante do confronto,

ele escapou

pelo breu

de uma piscadela.

Mas deixou seu rastro

nos primeiros fios

de cabelo branco.

O poema O olho do tempo nasceu pronto. É uma percepção cotidiana sobre marcas concretas do tempo em nosso corpo. Quando a querida escritora Neuza Mansani declamou meu poema no dia da premiação, não pude deixar de me emocionar e lembrar da Gigi de 10 anos, escrevendo seus primeiros poemas. Acho que nem em seus sonhos mais doidos ela imaginaria que estaria escrevendo poesia 18 anos depois. Mas a verdade é que ela sempre soube o que queria. Desde o primeiro contato com as letras, aos seis anos de idade, ela descobriu um mundo encantado. Quando elas apareciam no papel em branco e se agrupavam, formando palavras por meio da ação de sua mão que comandava o lápis no papel, era magia o que se revelava diante de seus olhos. A Gigi criança era bem quietinha, mas também decidida: sempre soube que queria ser escritora. Ela via no ato de criar um texto a possibilidade de sonhar acordada e perceber o mundo de infinitas formas.

 

SONHOS

Era uma vez uma menina que

pequenina só, brincava de boneca, feliz.

De repente, apareceram milhares de rostos no ar,

começando a grasnar e coaxar.

Gozação?  Não.

Parecia mais um enorme melão e muitos foguetes no ar.

Uma festa para muita gente e com muitas comidas

acabava de começar.

Não esquecendo do bailão animado com um cantor desafinado.

Gozação? Não.

Nuvens do mundo inteiro que alimentam sonhos de muita gente.

Pedaços de nuvens. Pedaços de sonhos. Pedaços de gente.

Sonhos foi o primeiro poema que eu escrevi. Hoje eu percebo nele essa sensação de encantamento com o mundo das palavras. Essa perspectiva de enxergar a ação de produzir um texto sempre como uma espécie de brincadeira. Quando a Gigi criança tinha uma folha em branco na sua frente e um caneta em suas mãos, uma sentimento poderoso de felicidade e arrebatamento a tomavam de tal forma que ela sentia que infinitas possibilidades se abriam diante de si. E esse mesmo sentimento permanece até os dias de hoje. Por isso, quando eu lembrei da Gigi criança na premiação do Concurso Literário e me perguntei se ela estaria feliz, sei que ela estava sorrindo para mim naquele dia.

E, alguns meses depois da premiação do Concurso, para ser mais exata, na última quarta-feira, tomei posse da Cadeira de número 38 da Academia de Letras dos Campos Gerais. Essa Casa Literária é essencial no campo da Literatura e da Cultura em nossa região e país, pois realiza atividades e belos projetos que promovem e cultivam a literatura regional. Na cerimônia de posse, também comemoramos o aniversário da Academia, que celebrava os seus 20 anos de existência na ocasião. Esse dia foi emocionante! Estavam presentes pessoas muito queridas, que me fazem lembrar de que escrever é antes de mais nada um ato de amor.

É uma honra participar agora dessa Família de grandes escritores que é a Academia de Letras. Meus antecessores na Cadeira de número 38 foram homens do campo da Medicina e da Poesia, que muito contribuíram para o desenvolvimento da região e do país. O patrono da Cadeira é o escritor, poeta e médico polonês Szymon Kossobudzki, Patrono do Ensino da Cirurgia no Paraná e figura fundamental no fortalecimento das relações polono-brasileiras. Também do campo da Medicina e da Poesia é o fundador desta Cadeira, Milton José da Silva Ribas,  que foi um homem incansável em ajudar o próximo. E o poeta e escritor Edmundo Schwab, primeiro ocupante desta Cadeira, mostrava em seus versos temas da vida com grande sensibilidade.

Sinto-me muito, muito feliz com essa conquista. A vida tem sido generosa comigo e sou extremamente grata por todos que estiveram e estão ao meu lado nessa jornada. Esses grandes homens que me antecederam na Academia me mostram que assim como a medicina, a poesia também é fundamental para os processos de cura pelos quais passamos ao longo da vida. São nos versos de tantos poetas que encontramos inspiração cotidiana, alento e coragem para enfrentar tempos de tormenta. Acho que a Gigi criança estaria feliz com essas novidades do seu eu adulto. Não é o futuro que ela imaginava, onde contava história de fantasia sobre elfos, bruxos e magia. A vida nos leva por caminhos ainda  mais emocionantes que a gente não faz nem ideia de que vai trilhar. Mas a intensa sensação de alegria ao encarar uma folha em branco e a ânsia descontrolado por contar histórias que a pequena Gigi sentia ainda permanece. Sempre. Em cada texto. Em cada poesia. Em cada post para o Longe Daqui, Aqui Mesmo que eu escrevo.

Pensar nas jornadas que trilhamos me lembrou da tocante homenagem que o confrade José Altevir Barbosa da Cunha realizou ao querido escritor e amigo que faleceu no mês de janeiro, Antônio Queiroz Barbosa, quando trouxe palavras de autoria do homenageado:

“Fazemos planos para a vida e ela tece os seus para nós – quase sempre prevalecem os dela. Afinal, a vida é o que nós vivemos, não o que a gente sonha. Como seu destino é o despenhadeiro do sempre, angariar respeito e marcar nossa passagem pelo mundo constituem os únicos modos de continuarmos a existir. Só o que moldarmos na pedra e na carne marcará nossa passagem pelo tempo, pois à medida que ele se esvai, nossa vida, contada em anos, passa a valer meses, semanas, horas em coisa incrível, passando dos minutos aos segundos, transmuta-se em eternidade, e viver é uma experiência por demais perigosa, pois se pode morrer a qualquer momento, em qualquer lugar, por qualquer motivo, e até mesmo sem nenhum” (Antônio Queiroz Barbosa).

O tempo é implacável no seu andamento. Como escreveu o grande Queiroz, “viver é uma experiência por demais perigosa”. Que a gente possa marcar nossa passagem por esse mundo com autenticidade, sendo fiéis aos nossos sonhos de criança e nossas crenças profundas.

Posse do vovô David na Academia de Letras dos Campos Gerais, em 1999, ano de fundação da Instituição. Eu estou ali de jaqueta marrom, junto com os meus pais, avós e a Ca Amatti. Na época, não fazia ideia de que duas décadas mais tarde iria também integrar a Academia.
Em 2019, eu e vovô David, um grande mestre e inspiração constante, no dia de minha posse na Academia de Letras dos Campos Gerais.

 

 

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Written by Gigi Eco
Gigi Eco ama aprender e faz muitas coisas ao mesmo tempo - é jornalista, fotógrafa, professora, rata de biblioteca e musicista por acidente. Ama viajar e é viciada em chás. É a escritora oficial dos cartões de Natal da família. É Doutora em Comunicação e Linguagens pela Universidade Tuiuti do Paraná (UTP) e atualmente trabalha no seu primeiro livro de poesias.