Lições da Jane: é melhor ser feliz do que ter razão
Jane Austen é bem direta ao descrever a heroína deste romance já nas primeiras linhas “bela, inteligente e rica”. No entanto, apesar de parecer possuir as características perfeitas para uma vida de sucesso, Austen considerava que Emma era uma personagem da qual apenas ela poderia gostar. Mas a verdade é que muitos leitores se identificam com os dilemas de Emma e é difícil não torcer por ela durante a trama. Se você ainda não conhece a história, aviso que esta resenha contém alguns spoilers.
Emma é apresentada para nós como senhora de Hartfield. Sua mãe faleceu já há muitos anos, a irmã mais velha se casou e vive em Londres com o marido e os filhos. A sua antiga governanta e amiga mais próxima, Srta. Taylor, também se casou, deixando-a sozinha com seu pai, o Sr. Woodhouse em sua vasta propriedade.
A família Woodhouse é provavelmente a mais influente de Highbury e, como consequência, Emma é a moça mais popular de todo o vilarejo. Percebemos a autoridade de Emma em seu grupo na forma como todos se esforçam para ser agradáveis na sua presença e no modo como sempre buscam e respeitam a sua opinião. Sua alta condição dentro da hierarquia social também a coloca na posição privilegiada de poder escolher o seu destino. E Emma declara logo no início do romance que não tem a menor intenção de se casar – fato especialmente incomum para as jovens de sua época.
Não é claro para nós, leitores, se essa falta de interesse se deve unicamente ao fato de que Emma não gostaria de deixar seu pai sozinho. Esse certamente é o motivo oficial, afinal o Sr. Woodhouse é extremamente dependente da filha. Acredito, contudo, que outra razão pela qual Emma não queira se casar é a falta de um pretendente que ela considerasse à sua altura, embora isso não seja expresso diretamente no livro.
Na falta de uma vida amorosa própria, Emma passa a se dedicar a formar pares ideais, um talento natural que julga possuir. É verdade que Emma incentivou o bem-sucedido casamento da Srta. Taylor com o Sr. Weston. Mas se terá sucesso em formar novas uniões, isso ainda irá se revelar na história. Emma utiliza de sua influência, por exemplo, para persuadir Harriet Smith a não se casar com o jovem pelo qual está apaixonada por considerá-lo inferior. Emma apresenta à sua amiga um partido muito mais adequado, o Sr. Elton, um verdadeiro cavalheiro. No entanto, o candidato que Emma julgava ideal para Harriet acaba justamente por declarar todo o seu amor para a própria Emma!
Esse episódio tragicômico mostra como Emma acabou confiando demais nas suas habilidades ao querer moldar o mundo a sua volta, deixando de enxergar as reais motivações e sentimentos que guiam as ações humanas. Emma se sente escandalizada pelo Sr. Elton ousar declarar-se para ela. O Sr. Elton, por outro lado, é incapaz de compreender como Emma pudesse supor que ele se interessaria por alguém como Harriet.
Nesse contexto o Sr. Knightley é o único que coloca limites para Emma e é capaz de lhe dizer verdades sobre si mesma que ela preferiria ignorar. O que me encanta em Emma é justamente a sua humanidade. Ela é orgulhosa e muitas vezes acha que tem razão, mas também é capaz de aceitar as críticas, acolher as suas falhas e sentimentos inesperados e melhorar a partir disso, sem nunca deixar de ser educada com os outros. Afinal foi ela que disse ao Sr. Churchill que preferia ser feliz a ter razão:
“– Oh, senhorita Woodhouse! Por que tem você sempre tanta razão?
– Asseguro-lhe que neste caso sinto muito ter tido razão. Tivesse preferido muito mais não tê-la e ser feliz.”
Um aspecto genial para mim no romance é como Jane Austen explora através da relação entre Emma e Jane Fairfax uma questão tão relevante na atualidade – a sororidade (ou a falta dela) entre mulheres. Foi fácil para Emma se aproximar de Harriet, moça em situação social inferior, e oferecer a ela sua amizade e visão de mundo – quase sempre com consequências negativas para Harriet. Ao mesmo tempo, observamos como Emma tem dificuldades para se aproximar de Jane Fairfax. Jane se encontra, em termos práticos, em uma posição menos favorecida do que a nossa protagonista. Apesar disso, Emma reluta em oferecer sua amizade a ela. É como se de alguma forma, ela se sentisse ameaçada pela beleza, elegância e pelas habilidades musicais de Jane Fairfax.
Somente quando a situação de Jane piora significativamente é que Emma a procura. Mas suas tentativas são frustradas, pois o orgulho de Jane a impede de aceitar as atenções de Emma. Acredito que esse tipo de comportamento entre mulheres é muito mais comum do que gostaríamos de admitir, principalmente porque muitas vezes ele acontece de forma não intencional. Quantas vezes não conseguimos vibrar com as conquistas de uma colega, justamente porque elas representam aquilo que mais gostaríamos de ter ou realizar e não conseguimos ainda? Ou quantas vezes não nos sentimos melhores simplesmente ao ver alguém em uma situação pior do que a nossa?
Em uma crítica anônima publicada em 1815 a respeito da obra de Jane Austen (ano em que Emma foi publicado) já se falava sobre a sua habilidade para descrever de forma precisa e realística as pessoas comuns em suas atividades cotidianas, comparando a escritora aos pintores flamengos que, ao invés de escolherem cenas extraordinárias, grandes feitos históricos e dramáticos, preferiam retratar com o máximo de detalhe e fidelidade aquilo que estava diante de seus olhos, as cenas domésticas que aconteciam na sala, por exemplo.
Para mim, Emma é um romance desafiador em vários aspectos, pois nos coloca em confronto com aspectos e dilemas de nossa própria humanidade, como quando hesitamos entre sermos bons e mantermos o orgulho intacto. Certamente, é um romance inovador, irônico e verdadeiro. O desfecho de Emma passa longe das dramáticas declarações apaixonadas. Ao final, é ao sentir ciúmes que Emma, antes tão contrária ao casamento, acaba se descobrindo apaixonada por seu melhor amigo. Cada personagem da trama acrescenta um toque de realidade maior e uma tonalidade própria à história. Suas interações nos levam a refletir sobre nossas próprias vidas e relações. Não faltam no romance noivados secretos, conspirações, um charmoso mocinho forasteiro, casamentos por interesse, por conveniência e, por que não, por amor?