Pequenas Eternidades: reflexões sobre uma viagem para o Fim do Mundo

Lá estava eu, voando para a Patagônia, a terra dos homens invisível de Exupéry. Objetivo: chegar ao Ushuaia, a cidade mais austral do planeta. No caminho para Bariloche, as nuvens pareciam neve e gigantes icebergs, lembrando-me de que voar é se aventurar pelo desconhecido. “Você não imagina a doçura de uma descida quando não se teme mais nem a pane, nem a bruma, nem essas nuvens baixas, fechadas sob você e sobre as montanhas ‘abaixo das quais é a eternidade’”, disse o escritor francês.

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Viajando pelo céu argentino

Talvez Exupéry falava da eternidade ao pensar na incerteza que é voar, estar dentro de um avião. A morte está à espreita a qualquer instante. O homem depende da máquina, do tempo, dos ventos. De circunstâncias que ele não controla. Não seria essa uma metáfora para a própria vida? Vivemos como se pudéssemos ter controle sobre o futuro, sendo que a única certeza que temos é de que o mundo é regido pela impermanência. Que somos senhores apenas de nossos atos.

Mas acho que da frase de Exupéry também podemos extrair um outro significado. Abaixo das nuvens está a incerteza, os começos e os finais. Mas também está aquilo que permanece. Nós, humanos, somos assim: seres terrenos que carregam o eterno dentro de si. Mesmo na finitude, nós permanecemos. Em cada ato de amor, nas memórias, nas histórias, nas nossas criações e engenhocas, nas marcas e pegadas que deixamos no mundo. Somos eternos em nossa finitude. Que paradoxal! O próprio Exupéry, morrendo jovem em uma missão de reconhecimento na 2ª Guerra Mundial, deixou suas marcas, sua centelha do eterno no mundo. Quem duvida que continuaremos a ler O Pequeno Príncipe por todas as gerações futuras enquanto existir mundo? Precisamos deixar o eterno que está em nós aflorar por nossos poros e inundar nossa vida e nosso cotidiano.

Eu sei que posso parecer louca ao afirmar isso: mas ao me dirigir para a Patagônia, senti como se estivesse recebendo um chamado do meu escritor favorito. Eu sabia que o aviador tinha realizado suas andanças pela América do Sul, mas não sabia exatamente por onde tinha passado. Que felicidade foi encontrar uma edição em espanhol de O Pequeno Príncipe durante a viagem para me inspirar ao longo do caminho rumo ao Fim do Mundo! As palavras de suas obras me acompanharam durante toda a jornada, como sussurros que me lembravam do extraordinário que é ser humano.

Já próxima do aeroporto, pensando nas palavras do escritor que falou tanto sobre a humanidade, me perguntava impressionada sobre o que via lá embaixo, observando a imensidão de terras desabitadas: “Onde estão as pessoas? Onde está a civilização?” Eu não sabia o que iria encontrar pelo caminho. Só sabia que iria superar qualquer fotografia que eu já tinha visto sobre a região.

A natureza da Patagônia é tão avassaladora porque não aceita negociações. Não se sujeita aos planos dos homens. Ela se impõe com sua presença. Ela apenas é. Em sua pureza. Em sua essência. Em cada lago azul-celeste de Bariloche. Na imponência dos gigantes Andes. Nas flores amarelas na beira da estrada. Em cada nuance. Em cada intensidade. Nas pequenas eternidades de todos os instantes. Nesses lugares mágicos que duram para sempre, enquanto houver mundo, que congelam o tempo naquele breve eterno instante para que a gente vislumbre o milagre da vida. Ali eu encontrei o deserto, as rosas, os carneiros. Senti-me como o próprio Pequeno Príncipe, fazendo uma viagem do Asteroide B-612 em direção ao planeta Terra.

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A magia dos lagos de Bariloche

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Eu e as flores encantadas do Paso Internacional Rio Don Guillermo

Na estrada para o Fim do Mundo, eu também descobri que os cães bonachões da Patagônia são os guardiões do bem viver. Sentados ao sol e sempre prontos para receber um agrado, eles sorriem com seus olhos, como se me dissessem: “Quem corre, perde o tempo, perde a vida”. As rosas de todas as cores, gigantes e intensas, também me sussurraram palavras de Exupéry ao sabor do vento: “He aquí mi secreto. Es muy simple: no se ve bien sino con el corazón. Lo esencial es invisible a los ojos”.

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Ca Amatti e os cães patagônicos em El Calafate

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Quando escutei o sussurro das rosas em Bariloche

A gente precisa cuidar de nossos tesouros, do que é importante para nós. E a natureza foi me ensinando uma lição por vez. Aprendi sobre resiliência, sobre aceitar o que não se tem controle: o frio, o vento, a neve, a morte. Essa abertura para o desconhecido me permitiu contemplar o que de mais precioso a Patagônia tem a oferecer: seu coração pulsante de vida. Apaixonei-me pelos guanacos selvagens, pelas raposas, pelas cerejas de Los Antiguos, pelos charmosos pinguins, pelos lagos de um azul intenso com imensidão de mar. O Perito Moreno também mexeu comigo. Entrei em estado de deslumbramento ao conhecer as geleiras, formações tão antigas da Terra, tão imponentes e sublimes no seu profundo azul. Ali o glaciar também roubou as palavras de Exupéry para me contar mais um segredo: “todas las rutas van hacia la morada de los hombres”.

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O charme dos pinguins de Punta Tombo

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O lago com imensidão de mar em Los Antiguos

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Escutando a sabedoria das geleiras em Perito Moreno

Viajando quilômetros pelas estepes desérticas, sem encontrar resquícios da presença humana, a Patagônia falou também dos homens, de sua coragem e do poder dos vínculos. A raposa que encontrei próxima do Estreito de Magalhães, em um dia em que ficamos presos da Isla del Fuego por causa dos fortes ventos, se aproximava sem medo dos carros em busca de comida. Lembrei da raposa amiga do Pequeno Príncipe, contando-lhe sobre a importância de se estabelecer laços e de cultivar amizades:

“Si vienes, por ejemplo, a las cuatro de la tarde, comenzaré a ser feliz desde las tres. Cuanto más avance la hora, más feliz me sentiré. A las cuatro me sentiré agitado e inquieto; ¡descubriré el precio de la felicidad!”

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Escutando a dança do vento no deserto

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Minha amiga raposa que encontrei na Isla del Fuego

A solidão me ensinou a valorizar o milagre de cada encontro. Acho que essa foi uma das lições mais poderosas que a viagem me trouxe. Não me esqueço do pequeno café na Vila Santa Lucía, no Chile, nosso refúgio da chuva. Estava frio e ventoso lá fora, mas ali, naquela pequena casa nosso grupo encontrou acolhimento. Calor humano. Antes de ir embora, a dona do café comentou que cantava e que ia nos presentear com uma canção. Ouvi emocionada as palavras de Mercedes Sosa:

“Cambia lo superficial
Cambia también lo profundo
Cambia el modo de pensar
Cambia todo en este mundo”

Ficaram martelando em minha cabeça as palavras de Mercedes ao longo da viagem:

“Pero no cambia mi amor
Por mas lejos que me encuentre”

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Acolhimento e Mercedes Sosa em Vila Santa Lucía

Tudo muda. Tudo passa. Mas a gentileza e o amor dos homens permanecem. Inquebrantáveis. Mais fortes do que a mais maciça das geleiras. Lembrei de Exupéry contando sobre um grupo de homens sobreviventes de um acidente aéreo. Reunidos em roda no deserto, compartilhavam o que tinham de mais precioso: suas histórias. Foram esses tesouros que trouxe para casa do Fim do Mundo – as histórias que escutamos, vivemos e compartilhamos com as pessoas que apareceram pela jornada.

Guardo no peito esses encontros extraordinários: a cantora e Mercedes Sosa e a chuva em Vila Santa Lucía; o velhinho de Los Antiguos com sua cachorrinha Sofie, contando-nos sua história de vida; as conversas com o viajante italiano sobre José Saramago e o que significa viajar; a moça do parador de Las Horquetas, que se aproximou com um mapa e nos ajudou a passar pelo deserto; nosso grupo desbravador que realizou um trekking pelos Andes em El Chaltén; as pessoas maravilhosas que participaram com a gente da expedição; minha família toda reunida.

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Las Horquetas: um refúgio no meio do deserto

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Com o grupo do trekking em El Chaltén: me senti como uma alpinista no cume do Himalaia quando cheguei ao final da trilha do Sendero Cerro Torre

Tem algo de mágico em uma road trip que você faz já adulta, com sua família participando de uma expedição rumo ao Ushuaia, a cidade mais austral do planeta. Você, seus pais, seus irmãos. Juntos depois de anos sem conseguir reunir todos em uma única viagem. Juntos, porque precisamos retornar para nossas origens, porque é preciso estar com quem se ama. Estávamos juntos se aventurando pelo sul do mundo um mês inteirinho. De repente, éramos crianças e adolescentes dentro de um carro em uma viagem de férias rumo ao desconhecido. Com as mesmas piadas e brincadeiras e implicâncias dos anos passados. Não adianta. Certas coisas nunca mudam. E não devem mudar mesmo. Fazem parte da nossa essência, dos nossos vínculos mais poderosos e duradouros. Você pode ir para terras distantes. Pode viajar 7000 quilômetros até o Fim do Mundo. Todas as viagens são longe daqui, mas, ao mesmo tempo, são sempre sobre aqui mesmo. Sobre nós e o mundo. Sobre nós e os outros.

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A família reunida em Bariloche

As geleiras impressionam pela magnitude e pela sua idade. Mas não me impressionam mais do que todos esses encontros extraordinários que vivi ao longo da jornada rumo ao Fim do Mundo. Ali, na Patagônia, as regiões habitadas na maioria das vezes ficam muito distantes umas das outras. Elas se transformam em refúgios, em faróis que acolhem os peregrinos da estrada. Mais uma vez Exupéry sussurrou em meus ouvidos. Lembrei-me de um trecho do início de Terra dos Homens:

“Trago sempre nos olhos a imagem de minha primeira noite de voo, na Argentina – uma noite escura onde apenas cintilavam, como estrelas, pequenas luzes perdidas na planície.

Cada uma dessas luzes marcava, no oceano da escuridão, o milagre de uma consciência. Sob aquele teto alguém lia, ou meditava, ou fazia confidências. Naquela outra casa alguém sondava o espaço ou se consumia em cálculos sobre a nebulosa de Andrômeda. Mais além seria, talvez, a hora do amor. De longe em longe brilhavam esses fogos no campo, como que pedindo sustento. Até os mais discretos: o do poeta, o do professor, o do carpinteiro. Mas entre essas estrelas vivas, tantas janelas fechadas, tantas estrelas extintas, tantos homens adormecidos…

É preciso a gente tentar se reunir. É preciso a gente fazer um esforço para se comunicar com algumas dessas luzes que brilham, de longe em longe, ao longo da planura”.

Mesmo em grandes distâncias físicas, a gente se reúne. É na união que a humanidade se fortalece. Emocionada, com todas esses pensamentos de Exupéry me acompanhando ao longo do caminho, eu não sabia que a Argentina ainda me reservava uma última surpresa. Não fazia ideia do que me esperava na última cidade em que ficamos no país antes de nosso retorno para o Brasil: Concordia. Decidimos ficar ali para conhecer as termas pelas quais a região é famosa. Entrei em êxtase ao ler sobre as ruínas do Castillo San Carlos, localizado na cidade, e descobrir que o próprio escritor passou por ali. Em 1929, Exupéry fez um pouso forçado nos campos próximos ao castelo devido a problemas no motor de seu avião.

O Castillo foi construído entre os anos 1886 e 1888, com materiais trazidos de diversas partes da Europa, pelo conde francês Eduardo de Machy. Depois de três anos, a família abandonou misteriosamente o lugar, deixando muitos objetos de valor. Outras famílias ocuparam o castelo, como a família francesa Fuchs Vallon, que ali vivia quando o escritor aterrissou na região.

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O encanto do Castillo San Carlos

No capítulo Oásis, de Terra dos Homens, Exupéry nos conta um pouco sobre essa sua experiência na cidade argentina, sobre sua visita ao Castelo, já bastante desgastado pelo tempo. “O muro de um jardim de nossa casa pode encerrar mais segredos que as muralhas da China”, ele nos revela. As ruínas da casa encantaram o escritor. O ninho de cobras embaixo da mesa de jantar o assombrou. Será a inspiração para a serpente que conhecemos em O Pequeno Príncipe? Ali, naquele pequeno oásis escondido em Concordia, o escritor nos ensina: “o mistério está em toda parte”. Precisamos valorizar as pequenas extraordinárias experiências com as quais a vida nos presenteia.

Ah, se as pedras desse castelo falassem… e nos contassem todas as histórias que presenciaram! Acredita-se que essa experiência inspirou o escritor a escrever O Pequeno Príncipe. Anos mais tarde, o Castelo foi abandonado, saqueado, sofreu um incêndio, culminando nas ruínas que vemos hoje. O local também tem um monumento em homenagem à Exupéry, retratando o Pequeno Príncipe em seu planeta, o Asteroide B-612.

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Pedras contam histórias no Castillo San Carlos

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Monumento em homenagem ao Pequeno Príncipe em Concordia

Meu encontro com Exupéry e com o Pequeno Príncipe em Concordia foi um lindo desfecho dessa aventura pelo Fim do Mundo. Lembro com emoção das nuvens que guardam a eternidade, das rosas, dos carneiros, da raposa, do Pequeno Príncipe em seu planeta. Eu não fazia ideia que, escondida na Patagônia, estava a terra dos homens invisível de Exupéry. Invisível, pois o essencial se camufla nos Andes, nas flores, no deserto, nas geleiras. Nunca antes a natureza me ensinou tanto sobre a humanidade! É na gentileza dos pequenos momentos, nas risadas e dores compartilhadas na caminhada, nas histórias vivenciadas juntos que vislumbramos as pequenas eternidades da vida. Instantes que ressoam para sempre em nossos corações, fazendo-nos gratos por simplesmente estar ali. Presentes. Abertos para viver as infinitas relações de amor e amizade que surgem na jornada.

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Written by Gigi Eco
Gigi Eco ama aprender e faz muitas coisas ao mesmo tempo - é jornalista, fotógrafa, professora, rata de biblioteca e musicista por acidente. Ama viajar e é viciada em chás. É a escritora oficial dos cartões de Natal da família. É Doutora em Comunicação e Linguagens pela Universidade Tuiuti do Paraná (UTP) e atualmente trabalha no seu primeiro livro de poesias.