Varsóvia, a cidade invencível

Se você tem acompanhado o blog, sabe que na semana passada escrevemos sobre o Levante de Varsóvia, o último ato de resistência da cidade diante da ocupação nazista. A revolta durou 63 dias. Mas o que aconteceu após a rendição das forças polonesas? Como Wisława Szymborska descreveu em seu poema “Depois de cada guerra / alguém tem que fazer a faxina. / Colocar uma certa ordem / que afinal não se faz sozinha. // Alguém tem que jogar o entulho / para o lado da estrada […] Alguém tem que arrastar a viga / para apoiar a parede, / pôr a porta nos caixilhos, / envidraçar a janela. // A cena não rende foto / e leva anos.

Mutirão coletivo para retirada dos entulhos da cidade após o final da guerra. Fotografia de Stefan Rassalski, Narodowe Archiwum Cyfrowe. Fonte: http://natemat.pl/133407,odbudowa-warszawy-architektoniczny-majstersztyk-z-wyburzonymi-zabytkowymi-kamienicami-w-tle

Cada cidade reage de forma diferente às marcas deixadas pela guerra. Algumas decidem manter a ruína como uma memória permanente da destruição. É o caso, por exemplo, da igreja Memorial Imperador Guilherme em Berlim. Olhamos para ela e imediatamente imaginamos o terror dos bombardeios. Outras cidades decidem a partir de um cenário aterrador construir algo totalmente novo, algo que seja o símbolo de um novo tempo. É o caso de Roterdã, que viu na destruição de seu centro antigo uma oportunidade moldar o futuro, alterando a estrutura urbana anterior radicalmente.

Varsóvia decidiu reconstruir. Não apenas os edifícios mais representativos, como o castelo e a catedral, mas toda a cidade velha, numa escala sem precedentes. Houve muitas perdas na infraestrutura da cidade. As pontes que uniam as margens do rio Vístula, que corta toda a cidade, foram destruídas. Aproximadamente 90% dos edifícios existentes no centro de Varsóvia estavam por terra. Além das perdas materiais, houve também imensuráveis perdas imateriais. Sem os antigos moradores, que davam vida à cidade edificada, houve a dispersão das memórias individuais e coletivas, dos costumes, modos de vida e comportamentos sociais transmitidos de geração a geração.

Cogitou-se na época transferir a capital do país para outra cidade. Mas aos poucos, os antigos moradores retornavam. A eles vieram se juntar novos, aventureiros que não tinham medo de se instalar nas ruínas. Relata-se que nesses primeiros dias os moradores que voltavam, buscavam inicialmente o local de sua antiga residência, depois buscavam a casa dos familiares ou túmulos. Era difícil circular pela cidade devido aos buracos e montes de entulho. Durante a noite não havia iluminação. Havia túmulos por toda parte e mulheres enlouquecidas vagavam buscando seus próximos.

Praça do mercado na cidade velha após o fim da guerra. Fonte: http://arttattler.com/architecturereconstructions.html

Praça do mercado na cidade velha na atualidade.

Mas, assim como aos poucos a vegetação vai tomando conta de uma casa abandonada, assim também a vida foi tomando conta da carcaça da cidade desaparecida. Inicialmente, a colaboração espontânea dos moradores foi responsável pela recuperação das funções principais da cidade. Em 1945, foi criado o Escritório para a Reconstrução da Capital (Biuro Odbudowy Stolicy – BOS), órgão responsável por coordenar os trabalhos de reconstrução da capital polonesa. O BOS contava com mais de 1500 funcionários, incluindo arquitetos, urbanistas, engenheiros, economistas e advogados.

O arquiteto e professor Jan Zachwatowicz foi um dos responsáveis pelo Departamento de Patrimônio Histórico do BOS (Wydział Architektury Zabytkowej) e teve papel fundamental nas decisões políticas que nortearam a reconstrução dos monumentos e do tecido urbano histórico de Varsóvia. Ainda durante a guerra, em 1939, Zachwatowicz tornou-se Diretor do Departamento de Arquitetura da Politécnica de Varsóvia. Clandestinamente, ensinava seus alunos e realizava com eles o levantamento de edifícios importantes, como aqueles que compunham o entorno da praça do mercado. Realizava essas atividades mesmo durante a ocupação nazista, correndo muitas vezes perigo pessoal. Salvou inúmeras obras de arte e documentos históricos levando-os para fora de Varsóvia em uma charrete. Os levantamentos arquitetônicos realizados pelos estudantes de arquitetura foram utilizados posteriormente como modelo para os projetos de reconstrução do centro histórico. Esses arquivos constituem um patrimônio documental único reconhecido hoje pela UNESCO. São o testemunho de um trabalho extraordinário, em tempos extraordinários, por uma causa excepcional.

A reconstrução de Varsóvia foi um processo complexo e repleto de contradições, principalmente nos distritos que não pertenciam à área do centro histórico consolidado. As decisões sobre o que seria reconstruído e o que iria desaparecer dependiam de uma luta política e ideológica. Em um cenário em que a ocupação nazista foi substituída pela repressão comunista soviética, a reconstrução de monumentos demonstrava uma concessão das forças russas para que se recuperasse parte do passado soberano de Varsóvia. É dentro desse contexto que foi construído o Palácio da Cultura e da Ciência, um “presente” de Stalin para a Polônia. Símbolo da opressão do período comunista, é ainda o edifício mais alto de Varsóvia. Abrigando diversos usos ao longo dos anos, e visto de todos os lados da cidade, o palácio foi sempre odiado pela população e até hoje se discute se deveria ser demolido.

Palácio da Cultura e da Ciência.

Do ponto de vista cronológico, o Palácio da Cultura e da Ciência, construído entre 1952 e 1955, é um edifício mais antigo que o Palácio Real de Varsóvia, cuja reconstrução iniciada na década de 1970 só foi concluída em 1984. Até hoje existe um certo constrangimento em relação à cidade velha de Varsóvia, como se por ter sido reconstruída, ela não tivesse o mesmo valor histórico da cidade perdida. Muitos poloneses relatam como preferem o centro histórico de Cracóvia, pois lá a cidade velha se manteve sem ter sofrido perdas durante a guerra. Cracóvia é de fato linda, mas Varsóvia é para mim ainda mais fascinante justamente porque resistiu, porque reconstruiu. Sua arquitetura fala ao coração. Em suas paredes vemos impresso todo o amor de um povo pela sua história, pela sua identidade e pela sua liberdade. Em 1980, o jovem centro histórico de Varsóvia foi reconhecido internacionalmente e inscrito pela UNESCO na lista do Patrimônio Mundial devido ao seu pioneirismo e como um exemplo positivo de suplantar os efeitos de uma guerra.

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Written by Ca Amatti
Ca Amatti é arquiteta restauradora, apaixonada pelos edifícios antigos, por viagens e artes gráficas. Tem saudades do futuro, mas ama os vestígios do tempo no mundo. Atualmente reside em Varsóvia, protegendo velhos palácios e monumentos dos efeitos devastadores do tempo e do esquecimento.