Todo mundo é um pouco Catherine Morland

Eu sempre me vi como Elizabeth Bennet, a protagonista de Orgulho e Preconceito, com seu espírito livre e sua língua afiada. Até reler A Abadia de Northanger e perceber que eu sempre fui muito mais Catherine Morland, a improvável heroína da paródia dos romances góticos que Jane Austen escreveu. Talvez essa percepção demorou para acontecer porque a gente costuma não querer encarar de frente as banalidades da rotina ou aceitar alguns aspectos que formam a nossa própria essência.

Acho que todo mundo, em alguma fase da vida, já sonhou em se aventurar por terras distantes, vendo-se como uma personagem cativante que encontra pelo caminho as pessoas mais surpreendentes. Em A Abadia de Northanger, Austen diz para o leitor: você não precisa ser extraordinário, uma beldade ou um gênio, para viver uma grande aventura. A protagonista desse romance divertido, Catherine Morland, é uma moça comum do interior. Sem grandes atrativos físicos, ou dotada de habilidades consideradas importantes de se dominar pelo sexo feminino, a heroína dessa história passa a infância se divertindo na lama, realizando brincadeiras de moleque. Na adolescência, sua aparência melhora. “Quase bonita”, Catherine passa a se dedicar à leitura compulsiva dos romances góticos, gênero em alta na época.

Quando Austen caracteriza sua heroína como “quase bonita”, podemos observar seu costume de rejeitar a construção de personagens femininas “lindas” e “perfeitas”. A escritora procurava desenvolver personagens de profundidade psicológica e valorizava aspectos como a curiosidade, a sagacidade e o caráter, ao invés apenas de atributos físicos das heroínas que criava. Aqui já vemos como Austen foi uma transgressora do seu tempo, questionando convenções sobre a idealização da mulher na literatura e trazendo para o seu romance uma improvável protagonista que não é boa suficientemente em nada, sendo uma garota comum de uma pequena cidade. Como qualquer um de nós.

A Abadia de Northanger foi um dos primeiros romances escritos por Jane Austen. Acredita-se que tenha sido terminado em 1803. É uma obra da juventude da escritora e já notamos esse aspecto pela própria protagonista, uma jovem de 17 anos que está descobrindo o mundo. Em 1803, Austen tinha vendido os direitos autorais da obra por 10 libras para os senhores da Crosby & Co. Os editores anunciaram rapidamente a publicação de Susan (título inicial da obra, posteriormente alterado pela escritora), mas o livro nunca foi impresso. Austen escreveu para a editora em 1809, questionando a demora na publicação e oferecendo um novo manuscrito, caso o primeiro tivesse se perdido. Ela ressaltou que, se não obtivesse resposta, ofereceria a obra a outras editoras.

Os senhores da Crosby & Co. responderam que não tinham a obrigação de publicar a obra, uma vez adquirida, e que Austen poderia reaver o manuscrito realizando o pagamento de 10 libras, valor recebido pela venda dos direitos autorais da obra. A escritora, que vivia com um orçamento apertado, não tinha esse dinheiro na época. O romance foi engavetado e Austen acabou reavendo o manuscrito anos depois. Isso não impediu a escritora de realizar as devidas revisões na história, com o objetivo de oferecer a obra a outros interessados. O romance acabou sendo publicado postumamente, em 1818, juntamente com Persuasão.

“Ninguém que tivesse conhecido no passado a menina Catherine Morland poderia ter presumido que ela nasceu para ser uma heroína”. Assim Jane Austen começa A Abadia de Northanger. Na história, a heroína é convidada por um casal de vizinhos, os Allen, para passar uma temporada em Bath. Balneário de termas romanas bastante frequentado pela sociedade inglesa, essa era a cidade para acompanhar as novidades, observar as pessoas e também ser visto por elas. No local, os bailes, o teatro, os passeios favoreciam os encontros e conversações.

Em Bath, Catherine faz amizades e desbrava o mundo. Ela conhece dois casais de irmãos, os Tilney e os Thorpe e, dessas interações, a jovem protagonista aprende sobre o valor da amizade. Também entende que é preciso compreender os acontecimentos e pessoas para além das aparências, investigando os jogos de interesses em que muitas vezes nos vemos inseridos.

Ao aceitar o convite do general Tilney, Catherine segue com a família para conhecer a sua moradia: a Abadia de Northanger. Que sonho para a nossa heroína, fã ardorosa do gênero gótico! Catherine passa dias e dias lendo essas histórias cheias de mistério e horror, de mocinhas explorando ruínas e lugares abandonados, descobrindo passagens secretas e investigando lendas e crimes sangrentos. A heroína imagina que irá viver na Abadia uma história como aquelas dos romances. Devo admitir que me vi um pouquinho na personagem, lembrando de minha infância e adolescência, quando lia incansavelmente livros de fantasia e me imaginava como uma personagem que ainda não tinha descoberto suas habilidades mágicas.

Austen nos apresenta os mistérios da Abadia com um tom de comicidade e de bom-humor, parodiando os exageros da dramaticidade gótica. Em Northanger, a saga de Catherine assume um aspecto quixotesco. Em Cervantes, os livros de cavalaria bagunçam a cabeça de Don Quixote, que enxerga nos moinhos assustadores gigantes. Em Austen, os livros também inspiram a mente da jovem heroína, que passa a enxergar crimes e mistérios na Abadia, misturando imaginação e realidade.

A escritora brilhantemente nos alerta sobre os perigos de ficcionalizar a vida, que pode nos afastar e distrair de questões vitais, como as amizades, o amor, o caráter. E nós também não sofremos desses perigos hoje? Com a ficcionalização da vida nas redes sociais, muito do nosso tempo se perde na procrastinação, na admiração de histórias belamente construídas, ilusões de realidade que nos distraem das questões que realmente importam.

Na trama, a protagonista percebe que a vida, em seus relacionamentos e jogos de interesse, é muito mais complexa do que qualquer romance. Em sua ingenuidade quase sábia, a personagem nos lembra de nós mesmos vivendo esse processo de amadurecimento que é a vida. A gente é um pouco como Catherine Morland, ávidos por aprender, por descobrir o mundo. Que a gente se inspire em A Abadia de Northanger e nunca perca o brilho nos olhos que tem na juventude. Essa ânsia por seguir em frente. Sempre. Com o coração aberto para o novo e para o futuro.

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Written by Gigi Eco
Gigi Eco ama aprender e faz muitas coisas ao mesmo tempo - é jornalista, fotógrafa, professora, rata de biblioteca e musicista por acidente. Ama viajar e é viciada em chás. É a escritora oficial dos cartões de Natal da família. É Doutora em Comunicação e Linguagens pela Universidade Tuiuti do Paraná (UTP) e atualmente trabalha no seu primeiro livro de poesias.